02 junho 2006

Poesia Feijoada à Minha Moda de Vinicius de Moraes

Feijoada à Minha Moda
Vinicius de Moraes

Amiga Helena Sangirardi
Conforme um dia prometi
Onde, confesso que esqueci
E embora — perdoe — tão tarde
(Melhor do que nunca!) este poeta
Segundo manda a boa ética
Envia-lhe a receita (poética)
De sua feijoada completa.
Em atenção ao adiantado
Da hora em que abrimos o olho
O feijão deve, já catado
Nos esperar, feliz, de molho
E a cozinheira, por respeito
À nossa mestria na arte
Já deve ter tacado peito
E preparado e posto à parte
Os elementos componentes
De um saboroso refogado
Tais: cebolas, tomates, dentes
De alho — e o que mais for azado
Tudo picado desde cedo
De feição a sempre evitar
Qualquer contato mais... vulgar
Às nossas nobres mãos de aedo.
Enquanto nós, a dar uns toques
No que não nos seja a contento
Vigiaremos o cozimento
Tomando o nosso uísque on the rocks
Uma vez cozido o feijão(Umas quatro horas, fogo médio)
Nós, bocejando o nosso tédio
Nos chegaremos ao fogão
E em elegante curvatura:
Um pé adiante e o braço às costas
Provaremos a rica negrura
Por onde devem boiar postas
De carne-seca suculenta
Gordos paios, nédio toucinho(Nunca orelhas de bacorinho
Que a tornam em excesso opulenta!)
E — atenção! — segredo modesto
Mas meu, no tocante à feijoada:Uma língua fresca pelada
Posta a cozer com todo o resto.
Feito o quê, retire-se o caroço
Bastante, que bem amassado
Junta-se ao belo refogado
De modo a ter-se um molho grosso
Que vai de volta ao caldeirão
No qual o poeta, em bom agouro
Deve esparzir folhas de louro
Com um gesto clássico e pagão.
Inútil dizer que, entrementes
Em chama à parte desta liça
Devem fritar, todas contentes
Lindas rodelas de lingüiça
Enquanto ao lado, em fogo brando
Dismilingüindo-se de gozo
Deve também se estar fritando
O torresminho delicioso
Em cuja gordura, de resto(Melhor gordura nunca houve!)
Deve depois frigir a couve
Picada, em fogo alegre e presto.
Uma farofa? — tem seus dias...
Porém que seja na manteiga!
A laranja gelada, em fatias(Seleta ou da Bahia) — e chega
Só na última cozedura
Para levar à mesa, deixa-se
Cair um pouco da gordura
Da lingüiça na iguaria — e mexa-se.
Que prazer mais um corpo pede
Após comido um tal feijão?— Evidentemente uma rede
E um gato para passar a mão...
Dever cumprido.
Nunca é vã
A palavra de um poeta...— jamais!
Abraça-a, em Brillat-Savarin
O seu Vinicius de Moraes

Texto extraído do livro "Para viver um grande amor", Rio de Janeiro, 1984, pág. 97.